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segunda-feira, 24 de abril de 2017

Being black is enough for the police to stop me


I came from London to Cova da Moura* four days ago. I was in England for a few weeks and that was enough to start feeling like a normal citizen. I have lived some time in London before and there are problems too, but there is a difference between England and Portugal. There I feel like a character in a movie, like any normal person, here in the country where I was born and which I'm citizen of, they always give me the role of a villain.

This time around I took long to leave the house. Today was my first real contact with the streets and straigt up I encounter the police. Every time I return home they always remind me what is my place in this society, that of the villain, the suspect simply because I'm black.

I went for a walk in the early sunny morning with my dog. I noticed a Volkswagen leaving my neighbourhood, the three people inside it staring at me. I thought that it could be the police. It’s like around here the police doesn't like to be looked at. Already on the other side of the road, I saw the same car turning into the car park next to the petrol station where I was. They all came out of the car with some urgency. I am familiar with this type of behaviour and any of us that grew up with this knows what comes next.

By my experience I knew they were police officers even though they were undercover. They didn't identify themselves or even say that they were police. They asked me for my documents. I said that I didn’t have my ID with me. I had come out with light clothes with the only intention of letting the dog for a 10 minute sniff and go back home. They said that I should have known that I should carry my documents at all times. I answered yes but suggested that we could go get my documents at my house which is 50 meters from where we were. I even explained that there was this occasion where I was stopped by the police officers in the same spot also with my dog and from there we went to my house so that I could identify myself and show the dog’s document as per their request.

While I was trying to talk with the police officers some memories from past traumas started to emerge. These are memories of racist police violence that I have suffered during my 37 years of life, especially a serious case that happened more than 20 years ago and is still very alive in me. It has always happened in the form of a stop and search or random identification check. There was never other reason if not that of being black. With me it has happened dozens of times but my criminal record is clear.

The threat of violence was present, and I started losing my line of thinking when I realised that the police officer that was talking with me didn't stop adjusting his gloves. That made me forget to ask for their names.

I felt the need to protect myself so I showed them the cuts that I had because of an operation that I had three days ago: two 10 centimetre wounds on my belly, stitched  and stapled. From there on their reaction started to change, the officer took off the gloves e got closer like with the intention of lifting my shirt to have a better look. I stopped him telling him that he could not touch me. They wanted to know more about the wounds. In their eyes, now I was a fragile villain.

I felt less frightened by then so I asked what was the reason for them to stop me and why they didn’t identify themselves. Up to this point they hadn’t identified themselves. Then one of them asked me my name. I said my name and then I asked his. He gave me his surname but yet they never showed me their badges.

It seems it was an offence for the officer when I answered him with a question and without a real reason to stop me they tried to justify it with the identification check issue. But they also didn't accept my suggestion of going to get it. "It’s not you who tells us what we should do”, one said. They left with out identifying me; according to them it was after all optional.
I didn’t find out whether there was any other, real reason for them to stop me except the colour of my skin. I was glad they didn't take me to the police station but the fact is that they didn't identify me either (no full name, no date of birth, no address, no legal status were requested). That shows that it was a pure case of abuse of power, discrimination and racial profiling.


*Cova da Moura is a neighbourhood in the outskirts of Lisbon. It is populated by around 6000 people who have their roots in the ex-colonies of Portugal, principally Cape Verde islands.

sábado, 15 de abril de 2017

Basta ser negro para a polícia me parar

Voltei de Londres para Cova da Moura há quatro dias. Estive na Inglaterra por umas semanas e foi suficiente para voltar a sentir-me como um cidadão normal. Já vivi muito tempo em Londres, e enquanto lá também há problemas, vejo uma diferença entre Inglaterra e Portugal. Lá sou como um figurante num filme, uma pessoa normal qualquer, aqui na terra onde nasci e da qual sou cidadão, dão me sempre o papel de vilão.

Desta vez demorei a sair da casa. Foi hoje o primeiro contacto com a rua e logo com os polícias. Sempre quando volto do estrangeiro eles me lembram qual é o meu lugar, o do vilão, sempre suspeito simplesmente por ser negro.

Sai com o meu cão para aproveitar o sol da manhã. Reparei num Volkswagen a sair do meu bairro, e as pessoas no carro olharam para mim. Já tinha atravessado a estrada, quando vi que o mesmo carro deu uma volta e estávamos todos no parque de estacionamento ao lado da bomba da Repsol da Buraca. Saíram do carro como se se tratasse de uma situação de urgência. Já estou familiar com essa conduta, e qualquer um de nós que crescemos com isso sabe o que vai suceder.

Pela minha experiência sabia que eram polícias, mas não se identificaram e estavam vestidos a civil. Pediram-me o documento. Disse que não o tinha. Tinha saído com roupa leve e só com a intenção de deixar o cão largar o pé por 10 minutos e voltar para casa. Disseram-me que eu devia saber que devia ter o meu B.I. comigo. Respondi que sim, sugeri que podíamos ir buscar o B.I. na minha casa, como ficava 50 metros do sítio onde estávamos. Ainda expliquei que já houve uma vez que me pararam quase no mesmo sítio com o meu cão, e daí seguimos para minha casa para eu mostrar o meu documento, e ainda tive de apresentar os documentos do cão.

Enquanto falava com os agentes começaram a voltar as traumas do passado. São memórias de violência policial racista que sofri durante os meus 37 anos de vida, e especialmente um caso grave que aconteceu há mais de 20 anos e até hoje ainda está comigo. Sempre foi no contexto de uma rusga ou de identificação sem outro motivo a não ser o facto de ser negro. Aconteceu dezenas de vezes, e nunca tive um registo criminal.

A ameaça de violência estava presente, e comecei a perder o meu raciocínio quando reparei que o polícia que estava a falar comigo estava constantemente a ajustar as suas luvas. Até esqueci de pedir os agentes para se identificarem.

Senti a necessidade de me proteger e mostrei-lhes os cortes que tinha levado na operação que tive há três dias: dois cortes de 10 centímetros fechados com pontos e agrafos na barriga. Aí a reacção deles mudou, o agente tirou as luvas e aproximou -se com vontade de levantar a minha camisa para ver melhor. Impedi-o dizendo que não me podia tocar. Queriam saber porque é que estava todo agrafado. Já, nos olhos deles, era um vilão fragilizado.

Já senti menos medo e perguntei qual era o motivo de me pararem e porque é que não estão identificados. Até esse ponto eles não me disseram que eram polícias. Um deles então perguntou qual era o meu nome. Disse o meu primeiro nome e perguntei o nome dele, e ele me deu o seu apelido, mas ficaram sem se identificarem oficialmente com o distintivo.

Foi ofensivo para o agente eu ter respondido com uma pergunta, e sem motivo justificável para me parar, voltaram a questão da identificação. Mas não aceitaram a minha proposta de ir a casa buscá-lo. ”Não é você que nós diz o que nós devíamos fazer”, disseram. Ficaram sem me identificar, dizendo que para eles afinal é opcional.

Assim, fiquei sem saber se houve um outro motivo para me pararem, a não ser a cor da minha pele. Enquanto fiquei contente por não me levarem para a esquadra, o facto de afinal não me terem identificado (não pediram nome completo, nem data de nascimento ou endereço) mostra que foi um puro caso de abuso de poder e de discriminação racial.


domingo, 26 de fevereiro de 2017

Até Livro de Reclamações negam

Não esperava esta.

Desde pequeno que comecei a frequentar a pastelaria mais famosa da Buraca. Quando ia à catequese e à missa, no final às vezes eu e os meus colegas íamos comprar bolos com creme, como o mil folhas, o palmier recheado e a popular bola de Berlim.

A pastelaria enchia quando tinha batizados, casamentos e comunhões. Era muito frequentado pelas pessoas que vivem na Buraca, no bairro Alto Cova da Moura e no bairro do Zambujal.

Há uns dias entrei no estabelecimento e cumprimentei toda a gente. Depois de mim entrou uma senhora que estava a falar ao telefone. Eu estava a espera no balcão para ser atendido e foi quando notei que o funcionário da Pastelaria atendeu a mesma senhora que ainda estava ao telefone.

- Desculpe lá, eu estava aqui primeiro, disse.

A senhora respondeu-me logo:
- Ah desculpe-me, de facto este senhor estava a minha frente.
- Ta desculpada, mas a culpa não é sua, é do senhor. Ele me viu entrar.

O funcionário, sem ter terminado o pedido da senhora, dirigiu-se para mim e disse:
- O quê é que quer?

Vendo o seu ar com um certo desprezo respondi:
- Acho que é melhor agora terminar o que já começou e depois me atenda se faz favor.

Depois de terminar com a Senhora o funcionário dirigiu-se para mim e voltou a ser mal-educado.
- O quê é que tu queres?

Notando essa agressividade e desprezo comecei a ferver por todos os lados, consciente que não podia perder o controlo.
- Com essa atitude e sem um pedido de desculpas não me apetece pedir nada, afirmei eu.
- Tá bem tá, resmungou ele.

Ai tomei logo a atitude que já tinha decidido tomar nestas ocasiões. Sem exaltar pedi o livro de reclamações.

Isso fê-lo ainda mais tonto.
- Não temos não, não damos, disse, virando as costas para mim.

Eu fiquei estupefacto com a negação do livro de reclamações*. Vi à minha volta e estavam cerca de 10 pessoas no estabelecimento.

- Estão todos a ver? Ouviram que este funcionário não me quer dar o livro de reclamações?

Mais estúpido fiquei, porque ninguém respondeu. Outros foram saindo. Prossegui com o pedido, desta vez ao seu colega.
- Não ligue, ele não está bem, ele não o viu, esqueça lá isso.
- Eu já disse que quero o livro de reclamações.
- Não posso dar, o patrão não esta cá, concluiu a conversa.

Retirei-me do estabelecimento. As vontades eram muitas mas peguei nas minhas cenas e saí... E já não vou lá mais.


*Já denunciei a situação. Os estabelecimentos comerciais que neguem o acesso ao Livro de Reclamações estão sujeitos a coimas até 30 mil euros.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Ali engenhero é mi

"Isto é totalmente diferente do que eu estava a espera", disse uma amiga olhando para a pequena colina. Já na minha casa ela olhou à volta e perguntou: "E isto, é seguro?"

Claro que é, digo eu. Tem uma coisa que sei com certeza, a maioria de habitantes aqui sabem melhor de construção do que outra coisa.

A Cova da Moura foi habitada por retornados e portugueses vindos de outras partes do país nos anos 70. Este acontecimento foi devido ao elevado preço das habitações em Lisboa na mesma época. A zona de Sintra foi fortemente procurada, e o acesso à compra de terrenos era mais fácil.

Aqui a maioria da população, não só os homens mas também as mulheres, já trabalhou na construção civil. Esse era o trabalho de mais oferta nos anos 80. E aos fins de semana muitos dos habitantes continuavam as obras em suas casas.


"Manda a massa", num tom alto dizia o Chicklim para que o servissem mais de massa."Tá a sair,  tá a sair", respondia o meu pai. Todos nós lá de casa participávamos, ora era carregar baldes de massa ou fazer uma linha para passar os tijolos para arrumá-los. Sábado e domingo eram dias de empreitada.

As casas podem apresentar uma estrutura fora do irregular mas são bastante solidas. O bairro tem algumas similaridades com outros bairros como Alfama ou Mouraria. Isso pode-se ver nas ruas estreitas e nos becos que formam pequenos labirintos. Nunca ouvi falar de nenhum desastre. 

"Ali engenheiro é mi", diz o meu pai com algum orgulho à minha amiga. Aqui a construção não foi feita de maneira a toa mas sim com bases de conhecimento de construção civil. Essas técnicas combinadas e com os estilos de cada imigrante ou emigrante originou numa identidade e uma particularidade em cada habitação. 

terça-feira, 4 de março de 2014

Odja força

Camarada ka morri
Camarada sta li
Na bô ku mi
Camarada ka corri

Odja força
Camarada sta li mé
Na mundo ki junta
Na gentis kê cria
Camaradas força!

Camaradas continua
Na luta...
Camaradas planos ka muda



O poema foi escrito para um amigo da Cova da Moura.
Descansa em paz, Avô.

domingo, 2 de março de 2014

Uma tarde no Coqueiro

O sábado levou-me até ao Coqueiro. É o café que nesses dias nunca falha música tradicional caboverdiana ao vivo. Sabia que o lugar proporcionaria uma boa tarde. "Dan kel café ku kel ponche, mano", disse ao meu amigo no outro lado do balcão. Os artistas tocavam com os seus instrumentos produzindo um som melódico. Éramos poucas pessoas naquela altura mas assim que o ritmo aqueceu, a música tornou-se num cheiro aromático atraente que de certeza viajou longe.

Mais pessoas e artistas apareceram. De repente esses mesmos artistas subiam ao palco sem problemas, como membros de uma grande família que aí estava, e cantavam uma ou duas músicas. O espaço ficou ainda mais animado e parecia que todos conheciam-se uns aos outros. A música mais uma vez fez maravilhas e juntou uma comunidade. Os pastéis de peixe e os torresmos saíram da cozinha. E como cheiro bom dá fome, foram muito populares.

Sai cá fora para arejar um bocado e falar com alguns amigos no pátio, quando uma carrinha da polícia aproximava lentamente. A primeira pensei que estavam a fazer uma simples rotina ao meio da tarde. Mas obviamente que não, nunca existiu uma simples rotina na Cova da Moura. Que tolice a minha. A carrinha estava cheia de polícias equipados com armas de fogo com a intenção de as mostrar a todos. Até consegui imaginar o resto que não era possível ver. Nesta prática passaram duas, passaram três vezes. Cada uma delas com gestos notórios de intimidação. Um caqueirada na cabeça, como dizemos em crioulo. Significa pancada na cabeça para aprender. 

Acabei por entrar no café para assistir mais um pouco da música. O guitarrista que decidiu animar mais com um show off a Jimi Hendrix até tocava com os dentes. Algumas pessoas dançavam enquanto outras observavam os músicos, como entendedores da arte.

No regresso vi crianças a brincar na estrada. Umas estavam a saltar a corda, outras a cantar. Depois surgiu um puto a correr por de traz de mim. "Pow, pow, pow!", gritou apontando uma arma imaginária. Recapitulei o que se passou naquele dia com a carrinha de polícias.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

O grande concerto improvável

Na passada 6º feira ao cair da noite já se sentia o frio, o vento fazia barulho e as nuvens estavam gordas e carregadas a cinzento escuro. Cheirava-me a um grande temporal. A minha vontade de ir assistir um concerto no Bartô já estava a desaparecer. Mas a curiosidade ganhou: o flyer informava que seriam LBC, Hezbó MC e AYE-AYE num concerto improvável. Este último grupo, ao contrário dos outros dois artistas que são rappers da Cova da Moura, não conhecia mas sabia que era de estilo punk.

Caminhei nas ruas estreitas e grafitadas de Lisboa com a sorte de ainda não estar a chover. Finalmente, depois de muitas subidas e escadas senti-me a chegar ao pico. O Chapitô parece uma pequena aldeia de madeira com árvores, plantas, mesas com velas e uma iluminação suave. Desci umas escadas ao bar Bartô e avistei LBC e Hezbó MC ainda cá fora. Foi um descanso ao saber que ainda não tinham começado. Ainda deu para conversar um pouco.

Lá dentro sentia-se uma vibração positiva pelo ar. Assim que peguei na minha cerveja, a batida começou a entrar. Hezbó MC com o LBC começaram a rimar em crioulo. No mic rolavam palavras como "fight pa tchiga freedom". Conhecia algumas músicas e quando dava por mim já estava a cantar. Outros convidados apareceram com MOV-I que adoçou mais o ambiente. Quando pensei que já estavam a fechar a sessão chegou a grande surpresa: uma mistura com os AYE-AYE, o grupo punk. O improvável, mas possível encontro. A recepção foi forte e o improviso foi à altura. A música deixou-nos com um sabor na boca, a pedir que continuassem.

Os artistas foram abordados com cumprimentos ao sair do palco, até que os perdi de vista. Fiquei muito contente por ter experienciado uma ocasião de estilos diferentes, mas juntos numa música de protesto. O caminhar para casa foi feita com grande alegria e sem preocupações climáticas.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Mensagem de paz

Vamos, como comunidade, pensar sobre o que se passou na Cova da Moura no mês de Outubro de 2013.

Vamos ser mais unidos e proteger uns aos outros.

Vamos ser mais activos na comunicação e na interacção.

Vamos aceitar as diferenças e ouvir opiniões.

Vamos ter coragem e enfrentar todas as dificuldades.

Vamos dizer não a violência.

Vamos distribuir uma mensagem de paz.

























Vamos?

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Histórias

De vez em quanto ainda peço à minha mãe para me contar algumas das suas histórias que passou em Lisboa. “Epá", diz ela, "nem imaginas o que passei no meu primeiro dia em Lisboa. Grávida de cinco meses e com três filhos não foi nada fácil. Aliás, foi um choque. Após várias tentativas notei que ninguém queria alugar-me um quarto. Não era devido à falta de quartos mas sim porque muitos senhorios não alugavam a Africanos na altura.  Desmoralizei com a situação. Mas graças a Deus apareceu uma Irmã da Santa Casa da Misericórdia que simpatizou-se comigo e com as crianças e foi aí que tive uma ajuda. Não sei o que seria de mim se isso não tivesse acontecido”.
     
“A situação era difícil”, continua o meu pai. “Também poucos que aguentavam pagar um aluguer devido à falta de trabalho e a baixos salários. Uma maneira de ter um tecto era comprar terrenos ilegais vendidos muitas vezes por agentes da GNR, como foi o meu caso. Tudo tem um preço, nha fidjo”, diz ele. “Falam muito das casas clandestinas mas não falam como foram adquiridas e nem do abuso que sofríamos todos os meses pela GNR que queria mesada. Se não déssemos, ameaçavam logo em deitar abaixo as nossas casas”, explica ele. “Os trabalhos eram a dias ou as obras. Era sem um dia de descanso porque incluía as obras da casa aos domingos”, diz exprimindo-se com o seu punho, como se estivesse a mostrar os sinais do trabalho duro.

Duro foi o efeito que teve na minha geração. Pouco era o apoio familiar devido a falta de tempo. Não haviam creches ou actividades que poderíamos frequentar. Vaguear nas ruas ficou um hábito. O refugio eram os amigos e o companheirismo que demonstravam. Por vezes não era a melhor opção, mas era o seguro e o familiar.

São tantas as histórias por aí mas precisam de ser ouvidas para continuarem vivas, prontas a serem divulgadas para a próxima geração. 

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Fitcha coragi e busca vida

"Olha as batatas, olha as batatas!"
Esse é o grito de alerta aos sábados de manhã do vendedor na sua carrinha. As donas de casa reconhecem-no e de imediato saem lá para fora caso precisem de abastecer o cesto dos vegetais.
"É barato, já agora leve o azeite e a garrafa de vinho, faço a um preço de amigo", diz o vendedor e o cliente pergunta se não quer abaixar mais um pouco.

Pouco de pois aparece outra carrinha desta vez a buzinar. É a vendedora dos ovos e das galinhas. Naquele instante a rotina se repete. Todos os vendedores sabem que há sempre uma possibilidade de fechar um bom negócio e o cliente pensa o mesmo. Essa é a essência de mercado de rua no meu bairro.

Eu me lembro que nos anos 80 a banana era uma relíquia. A minha mãe não as comprava porque eram muito caras. Todavia aparecia lá no bairro de vez em quanto vendedores com caixas de bananas. Elas eram moles mas os preços eram baixos.  Cativava-me aquele aroma bastante agradável e tinham um aspecto delicioso. A minha mãe aproveitava a oportunidade e comprava. A partir daquele momento eu passava a ser o monstro das bananas.

Mas também é normal encontrar nos bairros as pessoas locais a fazer o seu business. E não estou a falar de venda de droga. Hà a dona Dóka, a vendedora de frutas e vegetais, o sítio mais provável de encontrar a mandioca; a nha Póla vendedora do bom tabaco, que livra das horríveis constipações; o desenrasca do Cabeçada que passa a vida a consertar tudo e mais alguma coisa, que é muito popular pela sua disponibilidade e esforço.

Assim, o povo toma conta do seu próprio destino. "Fitcha coragi e busca vida", essa é a regra.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Tenho um sonho

Ao entrar na Cova da Moura o retrato de Martin Luther King chama-me logo à atenção. Uma figura possante e marcante. Vários sentimentos ocorrem na minha cabeça e espalham pelo meu corpo. Penso no seu poder de liderança, no código de não-violência que apoiava, na persistência que tinha e nas maneiras que fazia protestos numa época muito racista. 

“I have a dream” foi a parte do discurso de Martin Luther King que gerou um sol radiante de esperança e alimentou as aspirações de milhares de pessoas nos Estados Unidos da América. Foi um discurso que veio ajudar a uma mudança política a favor de melhores condições para os negros. Imagino os olhos regalados, os ouvidos afinados e as emoções de todos aqueles que o assistiram.

Nesse mês de Agosto faz 50 anos desde que foi feito o discurso “I have a dream”. É importante relembrá-lo e continuar a passar a sua legacia para que fique presente na memória do povo. O sonho de Martin Luther King é de uma sociedade de igualdade, livre, justa e de irmandade. Todos nós herdámos a responsabilidade para continuar o seu trabalho.

Na Zona o retrato de Martin Luther King transmite uma mensagem dupla. Representa esperança mas ao mesmo tempo alerta que continua a haver pessoas que sofrem de injustiça e de discriminação. As pinturas dos Smurfs que agora o rodeiam desviam e menorizam o que ele realmente representa.

A luta continua…

domingo, 18 de agosto de 2013

O puto

Me lembro que gostava muito de jogar a bola com os mais velhos lá da minha rua. Isso fazia-me sentir valorizado. O campo era a estrada, logo à frente das nossas casas. Os veículos circulavam com velocidade, quer de baixo ou de cima. Mas a malta assim que ouvia o barulho de um motor, parava logo o jogo. Parecia natural sentir a vir o perigo.

Estar com as mãos no chão era normal e sabia bem. Ora era jogar ao pião, à malha ou ao berlinde. Este último era um dos meus preferidos. Toda a rapaziada da zona desafiava -se entre eles. Os mais graúdos tentavam sempre jogar com os mais novos para acumular o máximo de berlindes e juntar à colecção. Eu fazia de tudo para não enfrentá-los mas às vezes era impossível escapar aos desafios e as apostas.


















Os carros era uma paixão minha, quase todos que passavam a rasgar na estrada gritava eu "Kel la é di meu".  Isso ajudou para criação de carros de caixas de fruta e madeira. Para mim eram ocasiões especiais. Sentia uma adrenalina enorme ao descer pela rua abaixo no meu carro. Por vezes fazíamos corridas com um final sem troféu mas com um sorriso gigantesco. As derrapagens e as curvas que levantavam poeira era uma maneira de exibir e mostrar controlo total do veículo. Às vezes lá surgia o descontrolo e as tombas. Tinha outros amigos que construíam viaturas de arame e lata que também era cool, e artístico.

Outras coisas que fazia era correr para todo o lado com aros de bicicleta ou pneus encontrados no lixo. Para mim era uma simulação de uma mota, na minha cabeça imaginária. Os para-choques dos carros abatidos que encontrava eram a minha canoa para deslizar numa descida de terra qualquer. Naquela época ser criativo era importante porque brinquedos não tinham. Ali tudo se transformava.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Verdadeiro ou falso?

Falso foi o que pensei quando vi pela primeira vez a foto de uma parte da Cova da Moura pintada toda de azul com figuras do filme Os Smurfs. Que brincadeira de mau gosto, pensei. Pareceu um lugar de um outro planeta.

Pouco tempo depois a imagem veio revelar-se verdade. Fiquei chocado e confuso. E ainda por cima é uma publicidade de um filme que está nos cinemas. Será que ficou bonito? Tem graça? Terá alguma vantagem? Que benefícios traz? O facto é que nada encontrei de benéfico naquilo tudo. Muito pelo contrário.




















O bairro é um lugar com vários problemas. Uma delas é a manutenção das habitações. Há várias famílias que não conseguem manter a casa em condições, mesmo se quisessem. Será que os que tiveram a ideia da pintura aproveitaram dessa situação? E será que os habitantes aceitaram a ideia por causa disto? Porque entre pintar e não pintar obviamente a maioria escolheria o pintar. Eu não conheço os detalhes por detrás disso. Mas a realidade é, se fosse um bairro mais rico os habitantes de certeza não deixariam isso acontecer.

O que irá acontecer quando o hype acabar? Será que as casas vão ser repintadas?

E o estrago que foi feito à pintura de Martin Luther King. Que cena, que insulto. Meterias um calendário pornográfico por trás de um crucifixo? Obviamente que não. Nada ficou a condizer. O King é sinonimo de assunto sério, não de brincadeira.
.
Por último, não gostava que a Cova da Moura viesse a ser identificada com a aldeia dos Smurfs. Já levámos com tanto preconceito, tantos estereótipos e piadas estúpidas.

domingo, 11 de agosto de 2013

Um lugar que chamamos de casa

Quando falo de casa, falo de um lugar de descanso. É como um barco atracado no cais depois de muitas agitações no alto mar. Ou o peito da Mamã aonde o bebé adormece depois de amamentar. Um lugar tranquilo e seguro. A minha zona, Cova da Moura, é esse lugar para mim.

Todos nós emigrantes ou imigrantes temos as nossas razões de sair do lugar aonde nós gostamos. Mas é sempre bom regressar as origens e se sentir em casa. Ouvir o funaná do vizinho, comer um gelado caseiro de Dona Noti, sentar com os amigos no Largo da Bola ou na Rua Principal e vaguear nos becos.


















Eu tenho a sorte de ter um lugar aonde voltar. Mas nem todos têm esse privilégio. Muitos bairros foram destruídos e os moradores foram realojados para outras áreas desconhecidas. A uns nem casa deram para orientarem á vida. Perderam o seu pedaço de terra, se assim posso dizer.

Nem imagino os vazios que sentiram e a desorientação que tiveram. Comunidades foram dispersas. Distanciaram famílias, amigos e vizinhos. Não foi só uma perda de morada, mas também de identidade.