sábado, 15 de abril de 2017

Basta ser negro para a polícia me parar

Voltei de Londres para Cova da Moura há quatro dias. Estive na Inglaterra por umas semanas e foi suficiente para voltar a sentir-me como um cidadão normal. Já vivi muito tempo em Londres, e enquanto lá também há problemas, vejo uma diferença entre Inglaterra e Portugal. Lá sou como um figurante num filme, uma pessoa normal qualquer, aqui na terra onde nasci e da qual sou cidadão, dão me sempre o papel de vilão.

Desta vez demorei a sair da casa. Foi hoje o primeiro contacto com a rua e logo com os polícias. Sempre quando volto do estrangeiro eles me lembram qual é o meu lugar, o do vilão, sempre suspeito simplesmente por ser negro.

Sai com o meu cão para aproveitar o sol da manhã. Reparei num Volkswagen a sair do meu bairro, e as pessoas no carro olharam para mim. Já tinha atravessado a estrada, quando vi que o mesmo carro deu uma volta e estávamos todos no parque de estacionamento ao lado da bomba da Repsol da Buraca. Saíram do carro como se se tratasse de uma situação de urgência. Já estou familiar com essa conduta, e qualquer um de nós que crescemos com isso sabe o que vai suceder.

Pela minha experiência sabia que eram polícias, mas não se identificaram e estavam vestidos a civil. Pediram-me o documento. Disse que não o tinha. Tinha saído com roupa leve e só com a intenção de deixar o cão largar o pé por 10 minutos e voltar para casa. Disseram-me que eu devia saber que devia ter o meu B.I. comigo. Respondi que sim, sugeri que podíamos ir buscar o B.I. na minha casa, como ficava 50 metros do sítio onde estávamos. Ainda expliquei que já houve uma vez que me pararam quase no mesmo sítio com o meu cão, e daí seguimos para minha casa para eu mostrar o meu documento, e ainda tive de apresentar os documentos do cão.

Enquanto falava com os agentes começaram a voltar as traumas do passado. São memórias de violência policial racista que sofri durante os meus 37 anos de vida, e especialmente um caso grave que aconteceu há mais de 20 anos e até hoje ainda está comigo. Sempre foi no contexto de uma rusga ou de identificação sem outro motivo a não ser o facto de ser negro. Aconteceu dezenas de vezes, e nunca tive um registo criminal.

A ameaça de violência estava presente, e comecei a perder o meu raciocínio quando reparei que o polícia que estava a falar comigo estava constantemente a ajustar as suas luvas. Até esqueci de pedir os agentes para se identificarem.

Senti a necessidade de me proteger e mostrei-lhes os cortes que tinha levado na operação que tive há três dias: dois cortes de 10 centímetros fechados com pontos e agrafos na barriga. Aí a reacção deles mudou, o agente tirou as luvas e aproximou -se com vontade de levantar a minha camisa para ver melhor. Impedi-o dizendo que não me podia tocar. Queriam saber porque é que estava todo agrafado. Já, nos olhos deles, era um vilão fragilizado.

Já senti menos medo e perguntei qual era o motivo de me pararem e porque é que não estão identificados. Até esse ponto eles não me disseram que eram polícias. Um deles então perguntou qual era o meu nome. Disse o meu primeiro nome e perguntei o nome dele, e ele me deu o seu apelido, mas ficaram sem se identificarem oficialmente com o distintivo.

Foi ofensivo para o agente eu ter respondido com uma pergunta, e sem motivo justificável para me parar, voltaram a questão da identificação. Mas não aceitaram a minha proposta de ir a casa buscá-lo. ”Não é você que nós diz o que nós devíamos fazer”, disseram. Ficaram sem me identificar, dizendo que para eles afinal é opcional.

Assim, fiquei sem saber se houve um outro motivo para me pararem, a não ser a cor da minha pele. Enquanto fiquei contente por não me levarem para a esquadra, o facto de afinal não me terem identificado (não pediram nome completo, nem data de nascimento ou endereço) mostra que foi um puro caso de abuso de poder e de discriminação racial.


domingo, 26 de fevereiro de 2017

Até Livro de Reclamações negam

Não esperava esta.

Desde pequeno que comecei a frequentar a pastelaria mais famosa da Buraca. Quando ia à catequese e à missa, no final às vezes eu e os meus colegas íamos comprar bolos com creme, como o mil folhas, o palmier recheado e a popular bola de Berlim.

A pastelaria enchia quando tinha batizados, casamentos e comunhões. Era muito frequentado pelas pessoas que vivem na Buraca, no bairro Alto Cova da Moura e no bairro do Zambujal.

Há uns dias entrei no estabelecimento e cumprimentei toda a gente. Depois de mim entrou uma senhora que estava a falar ao telefone. Eu estava a espera no balcão para ser atendido e foi quando notei que o funcionário da Pastelaria atendeu a mesma senhora que ainda estava ao telefone.

- Desculpe lá, eu estava aqui primeiro, disse.

A senhora respondeu-me logo:
- Ah desculpe-me, de facto este senhor estava a minha frente.
- Ta desculpada, mas a culpa não é sua, é do senhor. Ele me viu entrar.

O funcionário, sem ter terminado o pedido da senhora, dirigiu-se para mim e disse:
- O quê é que quer?

Vendo o seu ar com um certo desprezo respondi:
- Acho que é melhor agora terminar o que já começou e depois me atenda se faz favor.

Depois de terminar com a Senhora o funcionário dirigiu-se para mim e voltou a ser mal-educado.
- O quê é que tu queres?

Notando essa agressividade e desprezo comecei a ferver por todos os lados, consciente que não podia perder o controlo.
- Com essa atitude e sem um pedido de desculpas não me apetece pedir nada, afirmei eu.
- Tá bem tá, resmungou ele.

Ai tomei logo a atitude que já tinha decidido tomar nestas ocasiões. Sem exaltar pedi o livro de reclamações.

Isso fê-lo ainda mais tonto.
- Não temos não, não damos, disse, virando as costas para mim.

Eu fiquei estupefacto com a negação do livro de reclamações*. Vi à minha volta e estavam cerca de 10 pessoas no estabelecimento.

- Estão todos a ver? Ouviram que este funcionário não me quer dar o livro de reclamações?

Mais estúpido fiquei, porque ninguém respondeu. Outros foram saindo. Prossegui com o pedido, desta vez ao seu colega.
- Não ligue, ele não está bem, ele não o viu, esqueça lá isso.
- Eu já disse que quero o livro de reclamações.
- Não posso dar, o patrão não esta cá, concluiu a conversa.

Retirei-me do estabelecimento. As vontades eram muitas mas peguei nas minhas cenas e saí... E já não vou lá mais.


*Já denunciei a situação. Os estabelecimentos comerciais que neguem o acesso ao Livro de Reclamações estão sujeitos a coimas até 30 mil euros.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Homenagem a Eduardo Pontes


Se um dia esse mundo deixar
Espero que o nosso jardim permanecerá
Para hoje e amanhã o aroma navegar
Só assim que a minha essência continuará
-Naparama


sábado, 24 de maio de 2014

Rap di protesto

"Obrigado, bemvindos, é um prazer estar aqui", diz Hezbó MC quando abre um concerto. Transmite uma responsabilidade e humildade por ser um mestre de cerimónia, MC.

Fight pa txiga freedom é o título do seu último albúm. Tem como conteúdo critica social: os problemas sociais que de uma maneira ou outra nos afecta a todos como cidadãos. Hezbó MC fala dos subúrbios, da crise, dos imigrantes, dos assassínios pela mão da polícia, da dificuldade da comunidade africana, das discriminações e de outras experiências passadas pelo próprio.


Para além de um MC, também é um activista, e sente a responsabilidade para com o povo. "Eu falo [...] não só dos cabo-verdianos ou dos africanos mas também dos brancos pobres nos bairros, das pessoas que encaram com esses problemas", ele diz numa entrevista.

Hezbó MC tem traçado muitas lutas. Uma delas é a necessidade à utilização da língua crioulo, a sua língua mãe. Uma língua, que foi, e ainda é, muito criticada. Eu ainda me lembro de ser gozado por falar crioulo. Uns até chamavam de pretoguês porque não sabiam que crioulo é uma língua. "Falo na língua que sinto mais natural. [...] Eu também tenho esse direito", afirma Hezbó MC.


Em Portugal, os média tem por costume o hábito de consumir músicas em inglês. Só há algum tempo para cá que abriram mais espaço para outras músicas do mundo e nacionais. A questão da língua é muito importante. O escritor queniano Ngugi wa Thiong'o defende que "[l]anguage carries culture, culture carries [...] the entire values by which we came to perceive ourselves and our place in the world" no seu livro Decolonizing the Mind.

De mic na mão como seu canhão está a fazer uma excursão por todo o país. Promovendo o hip-hop e abrindo portas, uma vez fechadas. "Aquela mensagem, aquele sentimento que passo na minha música é importante."

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Ali engenhero é mi

"Isto é totalmente diferente do que eu estava a espera", disse uma amiga olhando para a pequena colina. Já na minha casa ela olhou à volta e perguntou: "E isto, é seguro?"

Claro que é, digo eu. Tem uma coisa que sei com certeza, a maioria de habitantes aqui sabem melhor de construção do que outra coisa.

A Cova da Moura foi habitada por retornados e portugueses vindos de outras partes do país nos anos 70. Este acontecimento foi devido ao elevado preço das habitações em Lisboa na mesma época. A zona de Sintra foi fortemente procurada, e o acesso à compra de terrenos era mais fácil.

Aqui a maioria da população, não só os homens mas também as mulheres, já trabalhou na construção civil. Esse era o trabalho de mais oferta nos anos 80. E aos fins de semana muitos dos habitantes continuavam as obras em suas casas.


"Manda a massa", num tom alto dizia o Chicklim para que o servissem mais de massa."Tá a sair,  tá a sair", respondia o meu pai. Todos nós lá de casa participávamos, ora era carregar baldes de massa ou fazer uma linha para passar os tijolos para arrumá-los. Sábado e domingo eram dias de empreitada.

As casas podem apresentar uma estrutura fora do irregular mas são bastante solidas. O bairro tem algumas similaridades com outros bairros como Alfama ou Mouraria. Isso pode-se ver nas ruas estreitas e nos becos que formam pequenos labirintos. Nunca ouvi falar de nenhum desastre. 

"Ali engenheiro é mi", diz o meu pai com algum orgulho à minha amiga. Aqui a construção não foi feita de maneira a toa mas sim com bases de conhecimento de construção civil. Essas técnicas combinadas e com os estilos de cada imigrante ou emigrante originou numa identidade e uma particularidade em cada habitação. 

terça-feira, 4 de março de 2014

Odja força

Camarada ka morri
Camarada sta li
Na bô ku mi
Camarada ka corri

Odja força
Camarada sta li mé
Na mundo ki junta
Na gentis kê cria
Camaradas força!

Camaradas continua
Na luta...
Camaradas planos ka muda



O poema foi escrito para um amigo da Cova da Moura.
Descansa em paz, Avô.

domingo, 2 de março de 2014

Uma tarde no Coqueiro

O sábado levou-me até ao Coqueiro. É o café que nesses dias nunca falha música tradicional caboverdiana ao vivo. Sabia que o lugar proporcionaria uma boa tarde. "Dan kel café ku kel ponche, mano", disse ao meu amigo no outro lado do balcão. Os artistas tocavam com os seus instrumentos produzindo um som melódico. Éramos poucas pessoas naquela altura mas assim que o ritmo aqueceu, a música tornou-se num cheiro aromático atraente que de certeza viajou longe.

Mais pessoas e artistas apareceram. De repente esses mesmos artistas subiam ao palco sem problemas, como membros de uma grande família que aí estava, e cantavam uma ou duas músicas. O espaço ficou ainda mais animado e parecia que todos conheciam-se uns aos outros. A música mais uma vez fez maravilhas e juntou uma comunidade. Os pastéis de peixe e os torresmos saíram da cozinha. E como cheiro bom dá fome, foram muito populares.

Sai cá fora para arejar um bocado e falar com alguns amigos no pátio, quando uma carrinha da polícia aproximava lentamente. A primeira pensei que estavam a fazer uma simples rotina ao meio da tarde. Mas obviamente que não, nunca existiu uma simples rotina na Cova da Moura. Que tolice a minha. A carrinha estava cheia de polícias equipados com armas de fogo com a intenção de as mostrar a todos. Até consegui imaginar o resto que não era possível ver. Nesta prática passaram duas, passaram três vezes. Cada uma delas com gestos notórios de intimidação. Um caqueirada na cabeça, como dizemos em crioulo. Significa pancada na cabeça para aprender. 

Acabei por entrar no café para assistir mais um pouco da música. O guitarrista que decidiu animar mais com um show off a Jimi Hendrix até tocava com os dentes. Algumas pessoas dançavam enquanto outras observavam os músicos, como entendedores da arte.

No regresso vi crianças a brincar na estrada. Umas estavam a saltar a corda, outras a cantar. Depois surgiu um puto a correr por de traz de mim. "Pow, pow, pow!", gritou apontando uma arma imaginária. Recapitulei o que se passou naquele dia com a carrinha de polícias.